Hoje a avó veio dar-me os parabéns pela madrugada. Já não me visitava há algum tempo. Invadiu os meus sonhos, pousou a cabeça na almofada e disse “23, hã?” e sorriu estridentemente, tal e qual como há 5 anos. Os cabelos dela estavam ainda mais brancos – não havia um único fio cinzento – e os seus olhos azuis ajudaram a madrugada a iluminar o dia. Veio de muito longe, de outra galáxia – à boleia de um meteoro ou de uma nuvem. Ela nem precisou do lembrete do Facebook! Quando acordei, tinha um bilhete pousado na mesa “Grelha as margueses e aquece a sopa. Parabéns”. Era da minha mãe. Será que se esbarrou com a avó?

 

Há dois anos, precisamente no dia 25 de abril (ironia do destino, se ele existir), fiz um post no blog sobre algo que me incomodou bastante. No dia anterior tinha ido à Semana Académica. Para quem não sabe, foi por Vila Real que tive o prazer de viver 3 anos, doseando o meu tempo entre as aulas e – quase todos, tantos quanto o agendamento de trabalhos e testes me permitiram – eventos organizados pela Associação Académica da UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro).  Tinha acordado por volta das 14h da tarde, as minhas amigas também. Entreolhámo-nos e fizemos a inevitável-pergunta-pós-dia-de-queima: “Oh pá… McDonald’s?”. Ninguém hesitou. A fome é negra! Rapidamente, vesti uma camisola larga, estilo EMINEM, umas calças de fato treino, atei o cabelo, engadelhado e sujo, e pus-me a caminho. Eu, a Patrícia e a Cíntia. Para quem conhece a cidade, sabe que parte do troço Ponte Vermelha – McDonald’s possui passeios estreitos, nos quais só cabe uma pessoa, portanto, de largura. Eu ia à frente e em “contramão” vinha um indivíduo. Desviou-se para o lado da estrada e torceu-me o mamilo. Não tive coragem de lhe bater, nem de lhe chamar filho da puta. Tive medo que reagisse de forma igualmente violenta. Quando estava longe, ainda que covardemente mas de forma a ser ouvida, fiz questão de lhe chamar “badalhoco”. Mais tarde, vim a saber que é o homem que arruma carros perto do shopping. Fui à GNR, que me encaminhou para a PSP. Foi aí que me deparei com a falta de sensibilidade com que tratam o tema. “É um caso isolado, não se pode fazer grande coisa”, disseram-me. Fiquei com nojo de mim própria. O Big Mac não me soube bem.  Sentia um contínuo formigueiro  no mamilo, como se estivesse a ser rodado em loop. Há dois dias, publiquei um questionário no grupo da UTAD sobre feminismo que gerou imensa discussão. Um dos comentário dizia “Estão a tentar ganhar pelo no sovaco, no buço, deixar de usar pensos/tampões para deixarem escorrer tudo pela perninha abaixo… Só falta também dizerem que andarem vestidas é coisa de machistas! Se bem que os homens acho que agradeciam solenemente este último ponto! Haja paciência…” e ainda outro: “O corpo é nosso sim, mas há limites do respeitável, se se vestem como putas são chamadas de putas ponto”. Nesse momento, senti-me mal, porque apesar de estar bem tapadinha no dia do infeliz acontecimento, não estava a usar sutiã (coisa rara, por acaso, e coisa que estranhamente estes – para mim, ignorantes – não mencionaram). Senti-me de imediato uma feminista-extremista, uma feminazi, como diziam na discussão. Mas logo fui chamada à razão! O assédio sexual é uma constante no dia-a-dia e toda a gente o sabe e parece ignorar, além de que nada tem que ver com extremismo e nem deveria ter que ver com feminismo. Deveria, pois, ter que ver com bom senso que, por sua vez, deveria culminar em senso comum. Ah, se deveria!!!

Este vídeo está tão bom que só me apetece gritar ao mundo, até ficar sem voz, o quão bonito ele é. Não julga, ensina. Não diaboliza, embeleza.

Quem me dera que o homem que arruma carros perto do shopping o tivesse visto.

Ser jovem é bom. Fui ao pão, passei por alguém mais velho. Quando voltei ainda apanhei essa pessoa. Tanto tempo que poupei! Não tenho as pernas bambas e lentas, pelo contrário, são bem firmes e rápidas, mexem com a mesma avidez das do Cristiano Ronaldo. Gosto de atravessar as passadeiras a passo de corrida, balançando-me para trás e para a frente. Nunca piso o asfalto, só a parte pintada de branco.

A mãe acorda cedinho na manhã de Natal. Acorda com as galinhas porque tem de cozinhar as rabanadas, os sonhos, as filhoses, a aletria e outros tantos doces da época. Sempre que cozinha gosta de ligar o rádio. Ouve a música e, no ritmo, mexe a paparoca. “Last Christmas”, vai uma volta com a colher de pau, “I gave you my heart”, e mais duas, “but the very next day” e mais três, “you gave it away”, e mais duas. A casa enche-se de alegria, a cozinha cheira ora à canela com que se polvilha a aletria, ora ao vinho do Porto com que se rega as rabanadas, que são feitas com pão velho – sim, as rabanadas são feitas com pão velho, leram bem – sendo o Natal a única época do ano em que a ASAE tolera que se vendam coisas fora do prazo de validade. O pai agarra na mãe e dança. A gata – apesar do seu ar alheado – brota uma energia diferente da habitual, sabemos, só de olhar, que está feliz. Talvez ela pressinta que as tias me darão, outra vez, mais umas cuecas da avó, que com certeza não usarei e servirão de manta para ela se aninhar.

Como trabalho numa loja de roupa não vou poder ajudar a mãe com os doces – cá para mim, ela até agradece. Não contem a ninguém, mas quando faço um bolo ele nunca cresce. Agora shhhh!!! É o nosso segredo.

– Menina, vende cuequinhas?

Oh não, ooooooooooooooooh não, outra que dá cuecas e meias como as tias!

– Não, minha senhora.

– E meia-calcinha?

– Acompanhe-me.

Lá lhe vendi umas collants com um gatinho em cada joelho (agora estão muito na moda). Talvez este ano em vez de se dar meias e cuecas, se dêem collants de rede e outras coisas sexies e, em vez de umas cuecas ou meias, a gata tenha umas collants para se aninhar.

Tenho 8 horas de trabalho pela frente. As pernas doem-me de estar tanto tempo de pé. Já só consigo pensar na mesa cheia de Fer…

– Menina? Tem o S deste casaquinho?

– Não, o S já não tenho.

– É pena. Olhe, bom Natal.

– Bom Natal.

Como eu estava a dizer, já só consigo imaginar a mesa cheia de Ferrero Rocher, Merci, Raffaello, Bolo Rei, entre outras coisas boas com as quais vou encher a barriga. (O ginásio é certo em 2019)

O relógio denuncia as 19h.

Faltam duas horas para me sentar à mesa com a minha família a comer as lascas do roliço bacalhau, com um fiozinho de azeite e couve e batata a acompanhar.

– Ai a menina está muito bonita com essa bandolete.

– Ordens do patrão.

(A bandolete tem uns corninhos de rena que se mexem através de um arame em espiral.)

– Olha, mãe, uma rena!

Raios partam as piadas!

– Pode vir aqui, por favor?

– Claro!

– A que horas fecham?

– Daqui por 1 min.

– Não tem este noutro número, pois não?

– Tenho em armazém.

Mal posso esperar por chegar a casa!

– Aqui está.

As pessoas entram e saem da loja, todas parecem apressadas. Querem comprar rápido para mais rápido ainda estarem perto das pessoas que amam. Em breve estarei com a minha família, junto à lareira. Eu e a minha mãe lutaremos pelo comando da televisão para ver Casados à primeira vista, o meu pai vai ficar danado. Eu e a minha mãe não cederemos porque ganha a maioria. Vivemos numa democracia ou não? O meu irmão ainda não tem voto na matéria. A gata não fala. O pinheiro pisca. As bolas caem, por vezes com a ajuda da gata. A rua está deserta e, no meio disto tudo, chego a casa. Cumprimento toda a gente, desembrulho um bombom.

– Assim vale a pena – e lambo os dedos.

– Feliz Natal.

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