Sobre o mesmo assunto da última publicação, a neve:

Dois velhotes, com cautela, passeavam pela Rua Direita. As pessoas não queriam escorregar e agarravam-se umas às outras. Parecia o Dia Mundial do Abraço. Hoje, lembrei-me que as ideias são dadas como quando se anda na neve, com medo e receio. Que pena que os velhotes tenham de andar ainda mais devagar do que o normal. What a waste of time!

Vila Real vestiu-se de branco. As pessoas sacaram os telemóveis do bolso e filmaram cada floco. Nenhum escapou ao olhar das lentes, garanto. Dos olhos, não tenho tanta certeza assim. Os condutores dos carros, em fila, enchiam a Av. Europa. Uma mulher ao volante filmava a cena. À noitinha, a chuva veio despir a cidade. Amanhã, já não haverão tantos acidentes.

Caixinha de Pandora

John_William_Waterhouse_-_Pandora,_1896

Da Caixinha de Pandora
Saíste tu. Em riste.
Veio do yomi-no-kuni,
Cochichavam.

Nessa altura eras bonita.
Loira, pernas de acrobata.
E eu… eu tão sem graça
Ora escrevendo versos,
Ora enxotando até barata,
Evadi-me que eras minha.

Sabias de literatura,
Da música, do Descartes.
Trazias nos doces lábios
Das coisas mais lindas
De entre as artes.

Minha mãe bem me avisou
“Lê antes de abrires o correio”,
Mas agora já abri. Está feito!
E meu coração… Ah, meu coração!
Como está feio.

 

 

Árvore
de Joana Manarte

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I
Tens comboios nas mãos, quando as pousas
em mim. Vão para todo o lado e eu deixo.
E saem-te penas dos pés quando andas.
Tens estilo.

II
Gosto de ir ao cinema na tua boca.
Apoio a cabeça nos cotovelos e fico ali especada em frente à tua boca. Aberta. E um filme a passar lá dentro, no escuro.

III
Nunca te contei isto, mas sonhei que dançaste comigo numa rotunda. Chovia, era de noite, passava um carro de vez em quando.
Quando acordei, tinha a roupa molhada. Era de noite. Passava um carro de vez em quando e tu estavas a dançar comigo numa rotunda.

IV
Tens nuvens nos braços. Reparei nisso a primeira vez que me abraçaste e eu não sabia do chão, mas não caí.

V
Todas as estátuas com quem falei invejam-te a beleza que trazes no corpo e no rosto e as pedras gritam que és escultura em movimento.

VI
A tua sensibilidade arrepia-me os cabelos. Levantam-se em alvoroço, como se houvesse vento de baixo para cima, e exibem-se para ti, como plantas vaidosas a cortejar o sol.

VII
Sabes desenhar com a imaginação, que eu uma vez perguntei-te sobre o amor e tu explicaste-mo com matemática. Ou com poesia, que é a mesma coisa. E tu lá desenhaste o infinito à frente
e atrás dos meus olhos e eu nem sabia que sabias desenhar assim.

VIII
Tu nunca dizes de chofre o que sabes fazer. Mas, por exemplo, uma vez puxaste-me para ti e deixaste cair o céu todo no meu ouvido. Ficou noite e eu sorri muito, já não tinha cara que chegasse.

IX
O teu peito é um oceano. Gosto de o olhar, de inventar barcos pequeninos a navegar e de me deitar toda nele, a ouvir a água.

X
Põe-me entre a tua pele e a areia. Molhada. Eu. A areia. Eu.

Eu em posições de oferta. Jugular em riste. Pernas de acrobata. Costas em arco e flecha. Frutos no peito. Mãos em flor. Árvore. É isso. A ti, ofereço-me em árvore.
Chegas-te perto e confundes-me as estações. Já tenho a boca tonta de vinho e outono e ainda sinto o mar a entrar-me entre as pernas.

Hirta, postura firme (se lhe der um empurrão não sai do sítio) e determinada a fumar o cigarro até ao fim. Não fumes caramelo, avisam as amigas.
Falta tudo a Rafaela, até um dedo da mão. Fuma tabaco barato, usa roupa que descombina até com o mundo. Mas tem uns sapatos pretos que brilham, devem ser roubados. Rafaela não teria dinheiro nem para comprar graxa.