I. Das coisas que odeio

Ser acordada pela gata com cio.
Ter de fechar a porta da casa de banho a meio do sono porque fiz com a Du o chamamento da Loira do Banheiro.
Nunca mais chegar ao meio de um livro que esteja a ler.
Escovar a carapaça da tartaruga que esperneia.
Limpar o pó a estátuas e móveis muito trabalhados.
Passar a ferro tecidos que passados a ferro ainda ficam mais enrugados.
Não ter dinheiro para comprar cajus na frutaria Bom dia.
Ler um livro e não ter um lápis de carvão à mão para sublinhar as palavras estranhas e as frases que interessam.
Estar a escrever como Pascal Quignar em “As tábuas de buxo de Apronenia Avitia”.
Não chegar à unha grande do pé, amarelada, pestilenta e asquerosa, do Pascal.
Não saber se a unha dele é realmente assim e estar, por infelicidade do destino ou somente falta de camaradagem com Pascal, a cometer grande blasfémia.
Pedir desculpa a uma unha micótica.

Tive um amor que foi como comer da pia dos porcos. Besuntei os cantos da boca, implorei pela carne da semana passada, salivei pela casca da batata, comi os pêlos do kiwizinho, estrebuchei na lama e nas fezes até os lábios se me luzirem de gordura, para depois – gloc gloc gloc – sem contar, cortarem-me a garganta. O meu amor saiu pelo corte.

O que eu não aconselho esta semana: usar amarelo acima do tronco, pois a Júlia Pinheiro no programa da manhã disse ao José Rodrigues dos Santos que significava que se era contra os cortes nas escolas privadas. Abaixo do tronco também seria demais, não é? E já agora… A Júlia ensinou ao José!…  Neste ponto poder-se-ia falar de um certo prémio que este fulano ganhou há pouco, mas isso fica para outra altura ou para nunca mais. Chupem escolas privadas, ergam as bandeirinhas amarelas ao ar, cortem-nas em círculos para haver muitos sóis. A corja amarela de que falava o Eça nos seus livros, Eça é intemporal.

E para arrematar:
«Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo… e, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos.»
José Saramago – Cadernos de Lanzarote – Diário III – pag. 148

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Toma esta música:
Eu seguro no início
E tu seguras no fim
Estende-a pelas flores
Por baixo delas, não por cima
(Estender por baixo não é difícil)
Não magoes as flores
Canta a música
Dobra-a em quatro
Fá-la bonita
Aprende piano
Aprende o tricô
Toca a guitarra
Cuida da gata

Tanta coisa para quê?

A música não estende
A música não dobra
E tu nunca aprenderás a tocar piano ou guitarra
-Não aprenderei, uma ova!


Sossega, querida
Esquece a melodia
Aprende o tricô
Cuida da gata

-Espera lá que eu já vô

Amanhã acordas às sete.

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What’s eating Gilbert Grape, 1993