A tornado flew around my room before you came

Excuse the mess it made, it usually doesn’t rain

In Southern California, much like Arizona

My eyes don’t shed tears, but boy, they bawl (…)

Or do you not think so far ahead? ‘Cause I been thinkin’ ‘bout forever

Ontem estava cheia de tosse, não conseguia controlar e fingir que não estava doente.

Hoje, a tosse desapareceu. Não sei para onde foi. O vento levou? Alguém varreu? Engolia-a com o jantar? Não sei dela. Morreu.

Parece-me que o amor é como a tosse.

agosto de 2021

— Senhora, você está com D…, disse-me o velho asqueroso, lá no Hospital da Luz de Coimbra, onde numa consulta de 30 minutos me foram cobrados, com muita pinta, 200€.

— D… quê?, perguntei com ar fino de madame que usa bolsa da Guess – porque não tem dinheiro para mais, mas já dá um up no look – que não entendia vocabulário tão simplório.

— Aquilo de que se queixa é D…, balbuciou o porco, ainda antes de me analisar.

— Défice neurológico focal, dermatite, dependência química, dengue hemorrágica…? Mas de alguma destas coisas é especialista?

— D…, e baixou o queixo, enquanto olhava, por cima das lentes, para mim. Não lhe vi a cara, ainda foi na época das máscaras, mas ainda bem. O homem era feio como tudo. Tinha-o pesquisado antes de ir. Era um dos melhores G. da cidade e eu precisava disso, de um bom especialista.

— Ó homem, diga lá.

Foi então que ele disse a palavra. Uma daquelas boas para rimar.

A resposta não me surpreendeu. Andava a dormir 3 horas por dia, chorava com o abanar das árvores, ficava muitas vezes perplexa a achar que tinha muito que fazer e não sabia por onde começar. Vomitava, porque bebia muito café para me manter acordada. Queria conseguir terminar o trabalho extra que levava para casa, escrever a dissertação e manter o part-time que somava com o full-time de jornalista. Além de, claro, todas aquelas coisas adicionais da vida quotidiana. Cozinhar, comer, lavar a roupa, pô-la a secar, passá-la. Vestir-me. Manter-me viva.

A D. não era por causa do Topo Gigio, ao contrário do que a minha mãe pensou, embora, claro, o facto de esse período de burnout ter coincidido com o término também não tivesse ajudado. Uma mulher não é de ferro, ainda que tenha bons e melhores pretendentes atrás de si.

— E o que decide?, questionou-me.

— Quanto a?

— Veio cá, porque ele achava que não era uma mulher normal…

— Eu sempre soube que era.

— Entendo. Vai querer reatar?

— Jamais. E jamais saberá de mim ou disto. Agora descobri o que tinha. Vou ter de sair daqui antes que o trabalho me coma até ao osso.

— É uma ótima decisão. Vou, então, receitar-lhe anti-D.

— Pode receitar, mas eu não os vou tomar. Sei o que me mói. A partir de hoje sou livre. Quer dizer, quando acabar o contrato.

— Não precisa disso. Isto ia ajudá-la. Conheço alguns amigos da área que lhe posso recomendar. Fica de baixa se vir que não aguenta.

— Uma mulher aguenta tudo.

Passei a placa no dia 16 de setembro, por volta das 16h32. Coimbra com um traço vermelho. Despedi-me das pessoas que por lá conheci. Jurei querer voltar a vê-las. Continuo a querer. Foi nesse dia que virei pena. Voei, então, feliz, muito feliz, para perto das montanhas (onde não há baloiços instagramáveis, mas pura poesia).

Agora, o abanar das árvores é só o abanar das árvores. E as flores condizem com a minha alma.

O carro queixou-se nesse dia, estava cansado, mas nem ele, tão inanimável, me falhou tanto quanto o Topo Gigio.

O cinturão NEGRO

Há muito tempo – foi há tanto que ele ainda era mais pequeno que eu – cheguei à escola e o meu irmão estava a chorar.

Perguntei-lhe o que é que se tinha passado.

– Foi uma pessoa que me bateu, respondeu, entre soluços, com os seus olhinhos verdes.

O meu irmãozinho. A pessoa que mais amo. À minha frente. Triste.

O meu coração de mana mais velha gritou “Vingaaaança!”. Espumando de raiva, a saliva caía, interruptamente, a meus pés e, com os olhos arregalados, dirigi-me ao suspeito de punho em riste.

Mas o dito cujo, constava-se, tinha cinturão negro, era um grande mestre das artes marciais.

Dei meia-volta.

Refleti.

*O que é que poderia beneficiar os dois?*

Se o vilão era assim tão bom a lutar, também eu cairia ao chão e em nada honraria o meu irmão. Antes pelo contrário! Seríamos DOIS soldados abatidos…

Fiquei com ele e, vendo-o chorar, abraçava-o, soluçava com ele, chorava com ele, fazíamos, em simultâneo, bolhas gigantes de muco nasal, que enchiam ao expirar e mingavam ao inspirar.

E foi assim que defini, naquele dia, o amor pelo meu irmão. Não se tratava de lutar. Tratava-se de cuidar, de estar ali a tirar lencinhos da mochila e dizer “Não te preocupes, a mana está aqui, vai sempre estar”. Outra pessoa poderia dizer-lhe estas palavras, mas ditas por mim, eu sabia, o efeito era outro.

Depois, quando tudo acalmou, dissertei que nada se deve resolver com violência, que o karma com sorte existe e que o fulano terá o merecido castigo, que a experiência se encaminhará de lhe mostrar que errou, etc, etc e tal.

Sabes… Nunca esqueci esse dia.

E, às vezes, ainda penso…

Não achas que agora já conseguíamos bater no gajo?

Decorei um monte de poemas
Enquanto apaixonada
Por J.

Depois, descobri que ele amava Sara
Depois, Carla
Depois, Luísa
Gorete, Cláudia, Isabela
Francisca, Eugénia, Beatriz
Renata (minha melhor amiga)
Até Gertrudes!

O desgraçado amou
Todas
Todinhas
Menos a mim…

Os homens não gostam de poesia
Cheguei, então,
À conclusão.


A ELISABETH FOI-SE EMBORA

(com algumas coisas de Anne Sexton)

Eu que já fui do pequeno almoço à loucura
eu que já adoeci a estudar morse
e a beber café com leite
não posso passar sem a Elisabeth
porque é que a despediu senhora doutora?
que mal me fazia a Elisabeth
a lavar-me a cabeça
não suporto que a senhora doutora me toque na cabeça
eu só venho cá senhora doutora
para a Elisabeth me lavar a cabeça
só ela sabe as cores os cheiros a viscosidade
de que eu gosto nos shampoos
só ela sabe como eu gosto da água quase fria
a escorrer-me pela cabeça abaixo
eu não posso passar sem a Elisabeth
não me venha dizer que o tempo cura tudo
contava com ela para o resto da vida
a Elisabeth era a princesa das raposas
precisava das mãos dela na minha cabeça
ah não haver facas que lhe cortem o
pescoço senhora doutora eu não volto
ao seu antiséptico túnel
já fui bela uma vez agora sou eu
não quero ser barulhenta e sozinha
outra vez no túnel o que fez à Elisabeth?
a Elisabeth era a princesa das raposas
porque me roubou a Elisabeth?
a Elisabeth foi-se embora
é só o que tem para me dizer senhora doutora
com uma frase dessas na cabeça
eu não quero voltar à minha vida

Adília Lopes

nós, os que adoramos viver,
sentimo-nos na obrigação de agradecer.

aos patrocinadores, colaboradores,
a todos quantos nos emprestaram o riso e o ranho,
aos que nos entusiasmaram encorajaram e
aos que ainda estão para vir

agradecemos,
a colaboração
ao haxixe de marrocos
à febre de malta
ao vinho da casa
à heroína
que casa c’o cowboy
lá para o fim do filme

agradecemos
ao fim do filme
por ter acabado
às sombras da tarde
por fazerem sombra à tarde
aos caminhos d’aldeia
por cheirarem a merda de vaca
ao senhor padre por ser virgem
nem ele sabe a importância que isso tem
nem nós também

agradecemos
ao white horse royal label
aos pudins flan
os maravilhosos momentos proporcionados

à nossa namorada
as incontáveis fodas
e as que demos sem contar

à mulher-a-dias
pela religiosidade com que nos lavou as cuecas
pela afeição com que nos viu crescer
pela idiotice de nunca querer ter sido mais nada

agradecemos
ao presidente da câmara
ter perdido as autárquicas
aos partidos no poder
e aos que ainda nos hão-de vir foder
às sogras tios e primos
a paciência de serem há tantos anos da família

agradecemos
ao sol da praia aos pardais ao ar lavado
e a todos os outros heróis mortos em combate e imortalizados
amortalhados em grandiosas estátuas
muros de betão

agradecemos
aos morcões e aos estúpidos
trissómicos e outros produtos das aberrações cromossómicas
a beleza com que são horríveis
é aí que vemos a infelicidade de que escapámos
é aí que temos a noção do tamanho bonito de existirmos assim

agradecemos
à dor aos sofrimentos inúmeros com que bordamos os nossos dias
porque nosso será o reino dos ceús

aos ladrões e às putas
pela sensação de imprevisto quando caminhamos na rua
por exibirem conceitos tão próprios de vida
e juramos
passar a cumprimentar toda a gente
estar infinitamente gratos
infinitamente gatos
piolhos porcos morcegos
infinitamente coisos despidos ao frio
vestidos ao sol
saias casacos camisas gabardines de vénus
roupa tanta sobre chãos
corpos galácticos

juramos estar infinitamente gratos
a todos os casais felizes
uniões duradouras bodas de prata
por demonstrarem o conceito da felicidade emparedada
o valor da paciência
o infinito do esforço

agradecemos
à arte à ciência à historia à sociologia
à política à religião
darem emprego a tanta gente

agradecemos
à tecnologia aos motores
pelo mesmo motivo
às fábricas aos computadores
idem
e a tudo quanto faça barulho cheire mal
foda a vegetação os rios os sóis a aragem
porque inevitavelmente somos a favor de uma poluição avançada,
não dessa como nos países de terceiro mundo que é feita
de gente magrinha
feia de ver.

Defendemos uma verdadeira poluição
pesada d’acordo com os padrões europeus

agradecemos
à tropa,
verdadeira escola d’homens
e à escola
tropa de meninos

agradecemos
a cristo marx reich
pela inutilidade prática das suas demonstrações
e agradecemos a todos quantos
fizerem demonstrações cheias de inutilidade prática
terem tido tanto êxito

não nos esqueceremos igualmente dos nossos teóricos
já lhes basta a infelicidade de serem
teóricos
de se esquecerem de comer
tudo a bem dos teoremas teóricos
explanações metafísicas
conceitos epistemológicos

não podemos claro deixar de
sentir ternura pelos nossos teóricos

agradecemos
às entidades divinas
a força que nos dão
a garra o querer e o tesão

e agora não agradecemos a mais ninguém
porque vamos comer um bom bife

talvez devêssemos agradecer
à defunta vaca

porque sempre em tudo o que façamos
sem dúvida contraímos
obrigação de comer um bom bife
e foder uma garrafa de verde

o que é um acto poético
de incomensurável estética.


João Habitualmente